sexta-feira, 6 de abril de 2007

João e o violão


“A lua nasceu e eu queria que estivesse aqui comigo”. Sua lua estava em Mauriti e a minha em Fortaleza, no encontro do rio com o mar. Levei um susto quando o celular tocou e ouvi aquilo. Saí da conversa morna, com Ethel e Valdo, e fui sentar na areia, para namorar melhor.
Foi ali, com os pés fincados no chão, que vi a nossa primeira grande diferença: eu apenas ensaiava alguns versos pobres (e metidos a besta) e aquele João, que eu conhecia há tão pouco tempo, era a própria poesia. Não havia adjetivo nenhum naquela frase: “a lua nasceu e eu queria que estivesse aqui comigo”. Surda, só consegui escutar um tom seco, imperativo até. Eu ainda não poderia entender a diferença entre fazer poesia e ser poesia; entre tentar escrever versos e fazer da própria vida um poema. Durante muito tempo isso me desconsertou e confundiu.
Eu o conheci por acaso, numa roda de samba do velho Arlindo, ainda quando o samba não era moda nos sábados da cidade e a voz inconfundível do Felipe embalava os quadris de poucas morenas. Dali por diante, vi o João quase todos os dias, por um ano e meio e falava com ele uma, duas, incontáveis vezes por dia. Ainda sinto o cheiro do seu guisado de carneiro, irretocável. E da paçoca que sempre levava para comer com a mamãe, aos domingos. Na cozinha, só precisava de minha orientação para fazer uma coisa: pipocas!
Foi ele quem reacendeu em mim essa febre louca de literatura, que até hoje não passou. Pelo menos uma vez por semana, costumávamos rodar pelos botecos mais escondidos da cidade, com o Ronaldo, a Ângela ou o André, tirando gosto com músicas, livros e, principalmente, poesias. Ele recitava versos de cor, contava histórias (ah, como contava histórias aquele historiador!) de violeiros, cordelistas, poetas afamados e anônimos. Meus amigos da UFC nem ligavam mais se eu estaria presente. Queriam mesmo era garantir a presença do João em mais uma rodada de transcendência cultural.
E tinha o teatro, o cinema (como o pai da Luzia-homem), a política estudantil de outros tempos, o sindicalismo. Mas havia, acima de tudo e de todos, o Samuel. Esse sempre foi o maior entre tantos amores. Um amor diário, de ajudar nas tarefas da escola, levar ao médico e passar noites em claro, andar na praça, na praia, em qualquer lugar. João jamais foi apenas “pai”, como conhecemos tantos, mas sentia e agia como pai e mãe. Aqueles olhos azuis iluminavam a alma e o rosto do pequeno Samuel.
Alguém há de argumentar, sabiamente, que não é possível amar tanto assim. E que não caberia mais sentimento algum dentro daquela poesia. Pois cabia, sim. É difícil que qualquer amizade entre mulheres seja tão companheira, e fiel, e livre, e duradoura quanto a amizade de João e Ronaldo. João e Bandeira. João e Elísio. Ou todos juntos e mais alguns. Mesmo depois que o drinque deixou de ser a desculpa para o encontro, eles continuaram dividindo e multiplicando sonhos, em todas as datas importantes de suas vidas, por trinta anos. A próxima seria em junho, quando João completaria meio século.
Não foi por acaso que Bandeira resolveu ligar para o amigo e matar a saudade, na última terça-feira, antes da Semana Santa. Talvez conversassem sobre as passagens já compradas para viajar com Samuel no feriado, sobre a amiga Marília, os novos planos em Limoeiro, a família, as novidades da Uece e da UFC, tanta coisa... não foi possível. Ao invés disso, centenas de amigos, todos de mãos dadas, contavam as novidades a João, no salão nobre da reitoria da UFC, onde trabalhou por tantos anos.
Volto pra casa e vejo seu último presente de aniversário pendurado na parede. Nunca ousei tocá-lo, nem ninguém. É como se, ao menor toque, meus dedos desafinassem os acordes do seu violão. A melodia perfeita mora ali, sem a invasão profana de almas inábeis. Uma modinha, uma cantiga tão suave e sensível que o João, quando a ouve, estala os dedos para acompanhar o tom, mastiga um cravo, ajeita os cabelos atrás da orelha e fecha os olhos para bebê-la lentamente.
(De repente, vejo nitidamente a causa do meu desconforto e da minha confusão: eu não conseguia olhar diretamente para alguém que ama tão completamente, com uma pureza, uma entrega, que somente uma criança, talvez, fosse capaz... e naqueles espelhos azuis eu via minha própria imagem fugindo, quebrando, na tentativa de não admitir que exista em nós a essência de tudo aquilo; uma essência que tenta passar entre as frestas, mas está trancafiada em mil compartimentos).
“A lua nasceu e eu queria que estivesse aqui comigo”. A lua se foi e você ficou conosco, tamborilando na mesa mais uma canção. Do Elomar ou do Xangai, quem sabe aquela do Paulinho Pedra Azul, que você tanto procurou para me dar e que ainda não cantamos juntos.